terça-feira, 5 de maio de 2015

Vida e história pulsam nos naufrágios



O canhão de proa da V-17, em foto de Marta Granville


A história da navegação – e, por que não dizer?,da humanidade - não está documentada apenas nos museus e nas bibliotecas, ou nos registros das companhias de seguro e dos armadores. No fundo dos oceanos ela desafia o tempo. Calcula-se que haja no Brasil mais de 20 mil naufrágios de todos os tipos, ocorridos desde os tempos do “Descobrimento” até os nossos dias.
De forma paradoxal, em meio a bancos de areia e recifes de coral, os naufrágios mantêm a história viva, desvendando para os poucos privilegiados que os alcançam com os olhos e as pontas dos dedos a coragem, a dedicação e o espírito de aventura daqueles que, em diferentes épocas, se lançaram ao mar para desbravar “novos mundos”, conquistar mercados, unir povos ou mesmo “defender a pátria”.
Submersas, as embarcações ganham sobrevida dramática, adiam o padecimento. Lá no fundo não são sucata - destino certo da maioria daquelas que cumpre a vida útil em operação -, mas relíquias arqueológicas, santuários da vida marinha e moradia segura de outros seres. Representam um tributo às suas tripulações. Arrisco dizer que é um fim nobre, honrado.
Entre os naufrágios brasileiros que mais impressionam e seduzem mergulhadores de todo o mundo, pelos seus aspectos históricos, pela beleza marinha e pelas dificuldades técnicas de acesso, está o da Corveta Ipiranga, em Fernando de Noronha (ver vídeo ao final deste texto). A embarcação foi “um importante protagonista da defesa da soberania brasileira”, como veremos adiante.


Afundada em 03 de outubro de 1983, após chocar-se com uma laje nas imediações da Ponta da Sapata, no chamado “mar de dentro”, face Norte do arquipélago, a V-17 repousa a 64 metros de profundidade (posição 03º51S,32º28W), guarnecida por robustos badejos Quadrado e cações Lambaru.
Após o choque da embarcação com a pedra, ainda houve tempo de manobrá-la e levá-la para águas mais profundas, longe das praias, onde não oferecesse risco aos banhistas, pescadores e à navegação. Todos os seus tripulantes foram evacuados e salvos.
O pesquisador Maurício de Carvalho relata no site Naufrágios do Brasil que a nau de Américo Vespúcio, mercador, cartógrafo e navegador italiano a quem se atribui o descobrimento do arquipélago em 1503, também foi a pique após colidir com uma rocha submersa no mesmo local.
Mas o protagonismo da Corveta Ipiranga em relação à soberania brasileira não se deve, evidentemente, a essa coincidência ou ao fato de ter sido a primeira embarcação da Armada a ostentar o nome do riacho paulista símbolo da proclamação da Independência. Essas são apenas algumas curiosidades que envolvem a sua trajetória.
Fabricado na Holanda, mais precisamente no estaleiro C.C. Sheepsbower & Geashonder Jonker & Stans, de Roterdã, o vaso de guerra teve o seu batimento de quilha em outubro de 1953, foi lançado ao mar em junho de 1954 e incorporado à Marinha do Brasil em janeiro de 1955.
Com 911 toneladas (1.025 a plena carga), tripulada por 64 homens, sendo seis oficiais e 58 praças, equipada com dois motores a diesel e armada com um canhão de 76,2 milímetros (mais quatro metralhadoras de 20 milímetros), a V-17 passou, a partir de então, a cumprir missões de patrulhamento na costa do Nordeste e de apoio às guarnições militares de Fernando de Noronha.
Foi durante uma dessas missões, em janeiro de 1962, que se deu o ponto alto de sua carreira. Com a palavra José Carlos Tavares e Fernando Clark, autores de Naufrágios do Brasil – Uma cultura submersa (Ed. Cultura Sub):
“A corveta realizava um patrulhamento de rotina no mar territorial (que na época era de 12 milhas), no litoral do Ceará, quando avistou um barco pesqueiro francês, o Cassiopé, especializado na pesca de lagosta. O comandante (...), capitão de corveta Heitor Alves Barreira Júnior, emitiu mensagem ao mestre do lagosteiro informando que estava em atividade ilegal, obrigando-o a seguir até o Porto de Fortaleza”.
Tinha início ali a “Guerra da Lagosta”, entre Brasil e França, na verdade, um tenso embate diplomático-comercial e uma sucessão de manobras aeronavais envolvendo uma força tarefa francesa, deslocada da costa da África, e grande parte da esquadra brasileira, com apoio de aviões da FAB.
Em agosto daquele mesmo ano, a V-17 ainda apresaria os lagosteiros franceses Folgor e Françoise Christine, que estavam em atividade ilegal. O recuo francês, e a retirada de sua força tarefa, não teriam ocorrido sem uma posição firme do governo brasileiro e da Marinha, instrumentalizada pela Ipiranga.
Com os seus 56 metros de comprimento por 9,9 metros de boca, a corveta repousa praticamente intacta no fundo de areia, como um patrimônio histórico respeitado e preservado pelos mergulhadores. As águas límpidas, de azul profundo (“roxas”, no jargão do mergulho), fazem com que a “descida” até a Ipiranga seja um deslumbre.
Pouco abaixo da superfície já é possível avistar a grande mancha no leito do mar e, logo em seguida, poucos metros a mais, a sua majestosa silhueta. Na chegada ao convés, pela popa, a recepção é feita por grandes cardumes, de variadas espécies, tanto de peixes de passagem como de recife. Os corais de cor intensa “devoram” o aço (o lento padecimento) e decoram o canhão de proa, provando que o naufrágio, ao contrário do que o senso-comum indica, é um baluarte da vida.
https://ssl.gstatic.com/ui/v1/icons/mail/images/cleardot.gif     Mergulhos como os realizados na Corveta Ipiranga exigem algum planejamento técnico. Devido à profundidade, são obrigatórias as paradas de descompressão, no retorno à superfície. Para quem não é mergulhador, vale o esclarecimento: as paradas planejadas permitem que o organismo elimine as bolhas de nitrogênio que se acumularam nos tecidos e na corrente sanguínea durante o mergulho, evitando a doença descompressiva, que, em casos mais graves, pode levar à morte ou deixar sequelas permanentes. 
No vídeo abaixo (imagens de Dudu Figueiredo), gravado em setembro de 2010, nota-se uma dificuldade adicional, além da profundidade: a forte corrente que obrigou os mergulhadores, "embandeirados", a fazer a descida pelo cabo de sinalização, sob o risco de se distanciar do naufrágio e ficar à deriva.
Nada disso, porém, desencoraja os mergulhadores no desafio que é visitar a Ipiranga, a embarcação que pode ser considerada a maior “protagonista da defesa de nossa soberania”, como definiram Silvares e Clark.

(Obs: Este texto foi publicado originalmente na revista Unificar,em abril de 2015)

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