O canhão de proa da V-17, em foto de Marta Granville
A história da
navegação – e, por que não dizer?,da humanidade - não está documentada apenas
nos museus e nas bibliotecas, ou nos registros das companhias de seguro e dos
armadores. No fundo dos oceanos ela desafia o tempo. Calcula-se que haja no
Brasil mais de 20 mil naufrágios de todos os tipos, ocorridos desde os tempos
do “Descobrimento” até os nossos dias.
De forma paradoxal,
em meio a bancos de areia e recifes de coral, os naufrágios mantêm a história
viva, desvendando para os poucos privilegiados que os alcançam com os olhos e
as pontas dos dedos a coragem, a dedicação e o espírito de aventura daqueles
que, em diferentes épocas, se lançaram ao mar para desbravar “novos mundos”,
conquistar mercados, unir povos ou mesmo “defender a pátria”.
Submersas, as
embarcações ganham sobrevida dramática, adiam o padecimento. Lá no fundo não
são sucata - destino certo da maioria daquelas que cumpre a vida útil em
operação -, mas relíquias arqueológicas, santuários da vida marinha e moradia
segura de outros seres. Representam um tributo às suas tripulações. Arrisco
dizer que é um fim nobre, honrado.
Entre os naufrágios
brasileiros que mais impressionam e seduzem mergulhadores de todo o mundo,
pelos seus aspectos históricos, pela beleza marinha e pelas dificuldades
técnicas de acesso, está o da Corveta Ipiranga, em Fernando de Noronha (ver vídeo ao final deste texto). A
embarcação foi “um importante protagonista da defesa da soberania brasileira”,
como veremos adiante.
Afundada em 03 de
outubro de 1983, após chocar-se com uma laje nas imediações da Ponta da Sapata,
no chamado “mar de dentro”, face Norte do arquipélago, a V-17 repousa a 64
metros de profundidade (posição 03º51S,32º28W), guarnecida por robustos badejos
Quadrado e cações Lambaru.
Após o choque da
embarcação com a pedra, ainda houve tempo de manobrá-la e levá-la para águas
mais profundas, longe das praias, onde não oferecesse risco aos banhistas,
pescadores e à navegação. Todos os seus tripulantes foram evacuados e salvos.
O pesquisador
Maurício de Carvalho relata no site Naufrágios do Brasil que a nau de
Américo Vespúcio, mercador, cartógrafo e navegador italiano a quem se atribui o
descobrimento do arquipélago em 1503, também foi a pique após colidir com uma
rocha submersa no mesmo local.
Mas o protagonismo da
Corveta Ipiranga em relação à soberania brasileira não se deve, evidentemente,
a essa coincidência ou ao fato de ter sido a primeira embarcação da Armada a
ostentar o nome do riacho paulista símbolo da proclamação da Independência.
Essas são apenas algumas curiosidades que envolvem a sua trajetória.
Fabricado na Holanda,
mais precisamente no estaleiro C.C. Sheepsbower & Geashonder Jonker & Stans,
de Roterdã, o vaso de guerra teve o seu batimento de quilha em outubro de 1953,
foi lançado ao mar em junho de 1954 e incorporado à Marinha do Brasil em
janeiro de 1955.
Com 911 toneladas
(1.025 a plena carga), tripulada por 64 homens, sendo seis oficiais e 58
praças, equipada com dois motores a diesel e armada com um canhão de 76,2
milímetros (mais quatro metralhadoras de 20 milímetros), a V-17 passou, a
partir de então, a cumprir missões de patrulhamento na costa do Nordeste e de
apoio às guarnições militares de Fernando de Noronha.
Foi durante uma
dessas missões, em janeiro de 1962, que se deu o ponto alto de sua carreira.
Com a palavra José Carlos Tavares e Fernando Clark, autores de Naufrágios
do Brasil – Uma cultura submersa (Ed. Cultura Sub):
“A corveta realizava
um patrulhamento de rotina no mar territorial (que na época era de 12 milhas),
no litoral do Ceará, quando avistou um barco pesqueiro francês, o Cassiopé,
especializado na pesca de lagosta. O comandante (...), capitão de corveta
Heitor Alves Barreira Júnior, emitiu mensagem ao mestre do lagosteiro
informando que estava em atividade ilegal, obrigando-o a seguir até o Porto de
Fortaleza”.
Tinha início ali a
“Guerra da Lagosta”, entre Brasil e França, na verdade, um tenso embate
diplomático-comercial e uma sucessão de manobras aeronavais envolvendo uma
força tarefa francesa, deslocada da costa da África, e grande parte da esquadra
brasileira, com apoio de aviões da FAB.
Em agosto daquele
mesmo ano, a V-17 ainda apresaria os lagosteiros franceses Folgor e Françoise
Christine, que estavam em atividade ilegal. O recuo francês, e a retirada
de sua força tarefa, não teriam ocorrido sem uma posição firme do governo
brasileiro e da Marinha, instrumentalizada pela Ipiranga.
Com os seus 56 metros
de comprimento por 9,9 metros de boca, a corveta repousa praticamente intacta
no fundo de areia, como um patrimônio histórico respeitado e preservado pelos
mergulhadores. As águas límpidas, de azul profundo (“roxas”, no jargão do
mergulho), fazem com que a “descida” até a Ipiranga seja um deslumbre.
Pouco abaixo da
superfície já é possível avistar a grande mancha no leito do mar e, logo em
seguida, poucos metros a mais, a sua majestosa silhueta. Na chegada ao convés,
pela popa, a recepção é feita por grandes cardumes, de variadas espécies, tanto
de peixes de passagem como de recife. Os corais de cor intensa
“devoram” o aço (o lento padecimento) e decoram o canhão de proa, provando que
o naufrágio, ao contrário do que o senso-comum indica, é um baluarte da vida.
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No vídeo abaixo (imagens de Dudu Figueiredo), gravado em setembro de 2010, nota-se uma dificuldade adicional, além da
profundidade: a forte corrente que obrigou os mergulhadores, "embandeirados", a fazer a descida
pelo cabo de sinalização, sob o risco de se
distanciar do naufrágio e ficar à deriva.
Nada disso, porém,
desencoraja os mergulhadores no desafio que é visitar a Ipiranga, a embarcação
que pode ser considerada a maior “protagonista da defesa de nossa soberania”,
como definiram Silvares e Clark.
(Obs: Este texto foi publicado originalmente na revista Unificar,em
abril de 2015)
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