quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

Em Fernando de Noronha, belezas naturais contrastam com o descaso das autoridades

Legenda: Nilson Mello em mergulho na Corveta Ipiranga. Foto de Marta Granville.


O Arquipélago de Fernando de Noronha, com suas 21 ilhas de origem vulcânica que se erguem de 4 mil metros desde o leito do oceano, e cuja formação geológica remonta há pelo menos dois milhões de anos, é um paraíso natural de beleza ímpar marcado pelo desleixo e descaso das autoridades. Com 18 km2 de área – 70% dela abrangidos pelo Parque Nacional Marinho, criado em 1988 – e distante 345 km do litoral do Rio Grande do Norte, no ponto mais próximo da costa, o arquipélago recebe por ano mais de 65 mil turistas, 10% deles estrangeiros.

           Distrito Estadual de Pernambuco, Fernando de Noronha já é um dos principais pólos da prática do mergulho de lazer em todo mundo, ao lado das ilhas caribenhas, do Mar Vermelho e da Grande Barreira de Corais, na Austrália. Também está entre os destinos mais visitados do país. Mas, apesar do afluxo de turistas e do retorno em receitas para os cofres públicos, a segurança e o conforto dos visitantes e, principalmente, dos ilhéus ficam comprometidos pela omissão do Poder Público.        
      
(Legenda: Os balcões de check in de embarque do Aeroporto de Fernando de Noronha, administrado pelo governo de Pernambuco, são precários barracões de madeira e teto de zinco.)

O sucateamento da infraestrutura do arquipélago é visível e contrasta com as paisagens paradisíacas que levaram a Unesco a declarar, em 2001, o arquipélago Patrimônio Natural Mundial. A começar pelas precárias instalações do aeroporto local, onde o check in é feito em barracões de madeira sem paredes e com teto de zinco, e cujos banheiros não oferecem condições mínimas de higiene, a imagem é de abandono, refletindo desrespeito com o contribuinte.

“Quem mais sofre com o descaso não são os turistas, mas nós moradores. Eu gostaria de saber o que é feito com as taxas e os impostos que são arrecadados aqui”, questiona Leanardo Gomes de Oliveira, morador que, como muitos outros, trabalha como guia ecológico.

(Legenda: No ancoradouro do Porto de Santo Antonio, o deck de acesso às embarcações está quebrado e sem data prevista para conserto, obrigando os turistas a um embarque improvisado)
 
No ancoradouro, as condições não são melhores. O deck de embarque e desembarque de passageiros no Porto de Santo Antonio – ponto de partida e chegada dos passeios de barco e, portanto, local de trânsito obrigatório de turistas – está danificado há mais de um ano e sem data definida para ser reparado. Isso faz com que o embarque seja feito de forma improvisada – e perigosa – num local destinado à movimentação de pescado e de carga.

O patrimônio histórico e arquitetônico está igualmente deteriorado. O Forte Nossa Senhora dos Remédios, relíquia arquitetônica erguida pelos portugueses no Século VXIII sobre ruínas de uma fortificação holandesa datada do século anterior, encontra-se em estado de abandono: mato crescendo em seu interior e no entorno, muros se deteriorando e nenhum vigia ou guia para orientar o visitante. As más condições de conservação também atingem as outras nove fortificações da ilha, ou o que restou delas, a despeito de representarem, em conjunto, o maior sistema de fortalezas do Brasil do século XVIII.

Embora a Superintendência Regional do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em Pernambuco tenha anunciado, em março deste ano, obras para reverter o “processo de degradação” do Forte dos Remédios que levariam seis meses, ao custo de R$ 258 mil, nenhuma melhoria ou restauro é perceptível até hoje.
O descaso em Fernando de Noronha alcança o setor de saúde e ainda o fornecimento de energia sustentável – uma preocupação que deveria ser inerente a um arquipélago que pretende se notabilizar pela preservação do ambiente. O Hospital São Lucas, único do arquipélago, só está aparelhado para atendimentos primários. A câmara hiperbárica, para tratar doença descompressiva, doada pela Associação de Mergulhadores de Fernando de Noronha deteriora-se num galpão da unidade, sob argumento de que não há equipe treinada para operá-la. 

A câmara hiperbárica é um equipamento indispensável para tratar mergulhadores com doença descompressiva – um mal que pode levar à morte ou deixar seqüelas permanentes – e cuja prevenção e o tratamento, portanto, deveriam ser preocupação das autoridades num destino turístico que se firma como pólo mundial do mergulho de lazer – e que assim tenta ser conhecido internacionalmente. 

 No que diz respeito ao fornecimento de eletricidade, a única torre de energia eólica da Ilha está quebrada há mais de um ano e sem previsão de reparo – a exemplo do deck de embarque do porto. 


(Legenda: Anderson Taboada e Andréa Benazzi, turistas e mergulhadores, gostaram das belezas naturais da Ilha, mas lamentaram o abandono da infraestrutura, como a torre de energia eólica quebrada.)


“A Ilha é maravilhosa, mas a infraestrutura poderia receber mais atenção das autoridades”, lamenta a médica Andréa Benazzi, que foi a Fernando de Noronha para a prática do mergulho. “O desleixo é evidente”, afirma o advogado e também mergulhador Anderson Taboada.

As ruas esburacadas e sujas, as construções mal conservadas e o esgoto refluindo e correndo a céu aberto no período de chuvas em plena Vila dos Remédios – que é o centro da Administração e do comércio local - compõem um cenário que faz de Fernando de Noronha um retrato em miniatura do que é o Brasil: um país de incontáveis belezas naturais, de povo afável e receptivo, mas cuja administração pública – independentemente de orientação ideológica, partido ou esfera governamental – não dá a devida contrapartida, em serviços e infraestrutura, ao esforço empreendido pela sociedade para movimentar a economia e aos valores recolhidos em tributos. 

Apenas com o pagamento da Taxa de Preservação Ambiental (TPA) diária, obrigatória para o desembarque em Fernando de Noronha, os visitantes deixam nos cofres estaduais R$ 12 milhões por ano, de acordo com a própria Secretaria de Turismo de Pernambuco, sem contar as receitas geradas com hospedagem, consumo em bares e restaurantes e contratação de outros serviços, como guias e aluguéis de veículos – essas não informadas pelo governo estadual até o fechamento desta edição.

A Lei estadual número 11.305 de 1995, que instituiu a Taxa de Preservação Ambiental (TPA), estabelece, em seu artigo 88, que a receita proveniente da cobrança desse tributo “deverá ser aplicada nas despesas realizadas pela Administração geral na manutenção das condições de acesso dos locais turísticos e dos ecossistemas naturais existentes em Fernando de Noronha, bem como para a execução geral de obras e benfeitorias em benefício da população local e dos visitantes”, metas distantes do que ocorre na realidade. 
(Legenda: Rua de acesso à Praia da Atalaia, um dos pontos mais visitados da ilha. Apesar da grande afluência de turistas, inclusive estrangeiros, que movimentam milhões por ano em Fernando de Noronha, o Poder Público não se preocupa com o calçamento das ruas, que acumulam sujeira.)


As promessas dos órgãos responsáveis 

Para justificar as omissões no que diz respeito ao investimento na infraestrutura de Fernando de Noronha e na preservação de seu patrimônio, os órgãos públicos apresentam respostas protocolares e vagas, acompanhadas de promessas. 

Por meio da Secretaria de Turismo do estado, o governo de Pernambuco explica que, “preocupado com o desconforto do visitante a Noronha”, decidiu elaborar um projeto para a reforma do aeroporto, cuja administração é estadual, “com etapas diferenciadas de construção”, integrando todos os serviços necessários e determinados pela ANAC – A Agência Nacional de Aviação Civil. Informa ainda que essas obras contemplariam melhoria do check in, nova praça de alimentação, novos banheiros, entre outros. Mas, no e-mail de resposta enviado à reportagem, o governo do estado não especifica quando começarão ou terminarão essas obras, nem os recursos necessários para sua execução.
(Legenda: O Forte dos Remédios é um patrimônio histórico que data do século XVIII em condições de abandono e, embora o Iphan informe que o monumento está sendo recuperado, não há sinal de operários no local nem de vigias ou guias.)

Questionada sobre a precariedade das instalações do aeroporto, a ANAC informou que “não tem como impor reformas ao administrador de um aeródromo”, ou estipular prazos para tanto. E que pode apenas aplicar restrições de vôos para aeroportos cujas instalações sejam deficientes. Mas que, no caso de Fernando de Noronha, não há qualquer restrição neste sentido. 

Com relação ao deck danificado, o governo de Pernambuco afirma que a Administração da Ilha está “empenhada” na liberação de R$ 80 milhões, junto ao “governo federal”, para iniciar a recuperação do Porto de Santo Antonio, sem especificar datas ou por que razão os valores precisam ser tão elevados e aguardar aportes federais, se o arquipélago tem administração estadual e recursos garantidos por meio da TPA e de outros tributos inerentes à atividade turística.
Quanto à câmara hiperbárica abandonada no hospital local, a resposta oficial é de que se trata de um equipamento doado pela iniciativa privada (a Associação de Mergulhadores) e que, portanto, não caberia às autoridades de Saúde a sua operação – a despeito da importância do mergulho de lazer em Fernando de Noronha. Ou seja, não bastasse terem feito a doação da câmara de descompressão, os mergulhadores devem se cotizar e montar uma unidade hospitalar e uma equipe médica para operá-la - ao menos é isso que se deduz da postura esquiva do governo pernambucano.

O mesmo tipo de justificativa é dado em relação à torre de energia eólica. Fonte limpa inesgotável de energia, responsável por mais de 7% da eletricidade consumida na Ilha até ter tido uma de suas pás da hélice quebrada (supostamente atingida por um raio) há mais de um ano, a torre hoje permanece como um monumento ao descaso, prejudicando a bela paisagem como se fosse um espantalho.

“A torre é de uma empresa particular”, desconversa o governo estadual, por meio de e-mail enviado pela Secretaria de Turismo, eximindo-se de repará-la, de obrigar os responsáveis a fazê-lo, ou de investir em outros projetos semelhantes. Hoje, 100% da energia local são gerados por uma usina térmica movida a diesel, fonte reconhecidamente não sustentável e altamente poluente.

No que diz respeito ao abandono do Forte dos Remédios, o superintende do Iphan em Pernambuco, Frederico Almeida, reconhece que as obras estão atrasadas devido à dificuldade e à complexidade de se levar material de construção por mar até a Ilha: “Infelizmente os navios que transportam os materiais para obra atrasaram a entrega (...). Estamos tomando providências para que a Administração da Ilha acelere a entrega (do material). Acho que só agora, está sendo dada a atenção que o patrimônio cultural da Ilha merece”, justifica, prometendo a recuperação imediata do forte.  (NM)

Naufrágios remontam a Vespúcio 

            Dentre os muito atrativos do fundo do mar em Fernando de Noronha - aí incluídos os encontros com tubarões e tartarugas ou a exploração de grutas e paredões submersos com mais de 70 metros de profundidade - o que mais seduz os mergulhadores é o naufrágio da Corveta Ipiranga (V 17), situado entre 55 e 60 metros de profundidade, próximo à Ponta da Sapata, no chamado “mar de dentro” (face norte) do arquipélago.

            O navio de guerra, fabricado na Holanda em 1953 e usado pela Marinha do Brasil no patrulhamento da costa do Nordeste e no apoio às guarnições militares da ilha, afundou em outubro de 1983, após chocar-se com a laje (rochedo submerso) da Sapata. Todos os tripulantes foram salvos.
            O pesquisador Maurício de Carvalho relata no site “Naufrágios do Brasil” (www.naufragiosdobrasil.com.br) que a nau de Américo Vespúcio, mercador, cartógrafo e navegador italiano a quem se atribui o descobrimento do arquipélago em 1503, também teria afundado após colidir com uma pedra no mesmo local.
            Com 56 metros de comprimento por 9,9 metros de largura, a Corveta Ipiranga repousa no fundo praticamente intacta, como um patrimônio histórico respeitado e preservado pelos mergulhadores de turismo, sob a permanente orientação das operadoras de mergulho locais. 

            “O mais importante é a consciência dos mergulhadores em Fernando de Noronha, contribuindo para a preservação do patrimônio submerso”, afirma Eduardo Figueiredo, experiente mergulhador carioca com mais de 20 viagens a Fernando de Noronha. A segurança tem sido uma preocupação permanente dos profissionais que trabalham com mergulho em Noronha, o que tem prevenido acidentes.

 Mas mergulhos como o da Corveta Ipiranga exigem planejamento técnico e experiência, uma vez que, devido à profundidade, são obrigatórias as paradas de descompressão. As paradas, feitas no retorno do mergulhador à superfície, permitem que o organismo elimine as bolhas de nitrogênio que se acumularam nos tecidos e na corrente sanguinea. 

O ar que os mergulhadores levam em seus cilindros, via de regra, tem a mesma composição do ar da superfície: 78% de nitrogênio (N2) e 20,94% de oxigênio (O2), além de outros gases em percentuais menores. Contudo, à medida que a profundidade aumenta, e com ela a pressão, o nitrogênio - que é um gás inerte, ou seja, não metabolizado pelo organismo – se expande pelos tecidos, ao invés de ser exalado. 

A doença descompressiva ocorre quando o mergulhador - devido a algum incidente ou a uma falha de planejamento ou de equipamento - não observa as paradas de descompressão que permitem a eliminação do nitrogênio residual. Quando isso acontece, bolhas de nitrogênio se formam no organismo, com sintomas que vão desde dormência e tonteira até paralisia dos membros, vômitos e dificuldade respiratória, com risco de morte e de sequelas permanentes. A única forma eficaz de tratamento é a câmera hiperbárica – que, em Fernando de Noronha, não está em funcionamento.  

Ironicamente, a maior atração do mergulho de Fernando de Noronha - a Corveta Ipiranga - resultou de um erro de navegação. E está sendo preservada pelos mergulhadores visitantes, independentemente da intervenção de qualquer autoridade. Neste caso, ao menos, o descuido oficial foi benéfico – ao contrário do que tem acontecido no Arquipélago, em terra firme, onde o descaso não tem qualquer efeito benéfico (NM).


(Legenda: Nilson Mello mergulhando na Corveta Ipiranga. O navio, que afundou na década de 1980 próximo ao ponto onde a nau de Américo Vespúcio teria colidido com uma laje, repousa a 55 metros de profundidade. O naufrágio é preservado pelos mergulhadores) Foto de Marta Granville..

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