segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Secchin e o primeiro tubarão

   

Carlos Secchin é o melhor fotógrafo submarino do Brasil e certamente um dos mais renomados do mundo. É também um dos grandes fotógrafos da natureza em atividade. Seus livros sobre Fernando de Noronha, Abrolhos, Ilha Grande e Pantanal, entre outros, são presença obrigatória nas estantes de quem ama o mar e a natureza.
    Mas, em Narcosis – viagens radicais (Record, 2001, 178 páginas), Secchin prova que também tem veia literária e sabe contar boas histórias como poucos. Aliás, não é exagero dizer que histórias sobre mergulhos e pescarias são tão boas quanto os próprios mergulhos e pescarias – ainda que os autores não as exagerem.
Um experiente mergulhador deixar de lado qualquer vaidade para relatar episódios prosaicos em que figurou como protagonista – ou principal coadjuvante – é fato raro.
Mergulhadores menos seguros de sua capacidade certamente não tornariam públicos seus percalços com “mareios” e vômitos a bordo, ou com traineiras indo a pique em mar revolto sem salva-vidas para os ocupantes, ou ainda com o assédio de tubarões. Secchin parece se divertir com essas situações insólitas à medida que as compartilha com o leitor, sem qualquer censura. E essa é a virtude de Narcosis.
Um trecho:
“A primeira experiência com a criatura mais temida dos mares ocupa lugar seguro na memória de qualquer mergulhador. Parafraseando o slogan de sucesso, ‘o primeiro ataque de tubarão a gente nunca esquece’. A minha primeira vez aconteceu em julho de 1978, em Fernando de Noronha. Foi no canal da Rata, ao lado da Ilha do Meio, na sua parte abrigada. Naquele dia, um idiota que pescava em nosso barco decidiu limpar e atirar no mar as vísceras das piraúnas que fisgava. Verdadeiro petisco para os cações locais, eram em quantidade suficiente para criar um corredor de cheiro capaz de atrair predadores de maior porte. (...) Não tardaram a despertar a gula de um tubarão galha-preta, que emergiu das profundezas como um torpedo, disposto a abocanhar o que quer que encontrasse pela frente. (...) Neste momento, um terceiro personagem entrou em cena. Alheio ao que acontecia lá embaixo, um turista nadava na superfície, agitando a água com suas nadadeiras, o que atraiu o meu agressor como um imã desviando o ponteiro de uma bússola. Em sua voracidade, o bicho arrancou uma das nadadeiras do turista. Mas continuou rondando e apertando o cerco sobre a nova presa. Com a ajuda de um tridente adaptado à ponta de um cabo de vassoura, o turista se defendia, empurrando o tubarão aqui e ali; e irritando-o mais ainda. Consegui ganhar distância e subir no barco onde, todos, perplexos, assistiam à cena. (...) Houve quem quisesse içar o turista, mesmo sabendo do risco que ele correria de perder uma das pernas. Não havia dúvida. Pelo silêncio e pelos olhares de todos a bordo, logo percebi que eu era o “voluntário” escolhido pela maioria. (...) É claro que me faltava convicção para voltar àquele pesadelo...mas não havia outra coisa a ser feita. Desci suavemente, procurando fazer o mínimo de ruído possível. Ainda assim, no momento em que toquei na água, tão logo as bolhas do visor de minha máscara se dissiparam, ele já estava em cima de mim. Por puro reflexo, puxei o gatilho (da arma de mergulho). O corpo da fera estremeceu ao ser atingido. Imediatamente, lancei a espingarda sobre o convés. Mas a força de três homens na carretilha não bastou para embarcá-lo. Desapareceu no fundo, levando o arpão”.
Em outro trecho, Secchin conta como ficou emocionado quando, no naufrágio do Itapagé, no litoral sul de Alagoas, dois companheiros de mergulho, caçadores submarinos, baixaram suas armas ao invés de dispará-las sobre um grande cardume de xareús. O autor pôde, durante alguns minutos, fazer suas melhores fotos, sem que o cardume fosse disperso pelos arpões. E sentiu-se homenageado pelos companheiros. “À noite, à mesa de um bar, depois de muita conversa e cerveja, agradeci a honraria. Houve um silêncio constrangedor e logo a seguir, só para me sacanear, eles me disseram que toda vez que mergulham sobre o Itapagé, ficam imóveis alguns minutos, rezando pelas almas das vítimas do naufrágio...”
Essas e as demais histórias de Narcosis traduzem com humor o verdadeiro espírito do mergulho. Uma advertência: o risco de narcose, durante a leitura, é grande.

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